terça-feira, 4 de outubro de 2022

 De novo atravesso a dimensão de minhas saudades, vou flanando até aquele lugar encantado.

Quando a noite vem e a algaravia cessa, entro na alcova abro a janela e vejo a Lua encostar no parapeito, então deito e chamo o sono que produz meus sonhos fantásticos e assim vou viver, vou fazer renascer os dias de minha primeira infância, os dias em que existiam meu pai, minha mãe, meus irmãos e irmãs, naquele quintal encantado de árvores gigantes frondosas e mágicas.
Aqui anoiteço, mas ao atravessar a tênue linha das dimensões humanas, lá o dia dia amanhece.
O cantar do galo pedrês, o badalar do sino da igreja em sincronia com o relógio de carrilhão ali na sala, desperta a meninada e a moçada, um único banheiro faz o trânsito congestionar, época de banhos absolutamente individuais, resolvida essa procela, os odores de espuma de barbear, gel de cabelo, pó para evitar chulé, pó de arroz, patchoulli, lavanda, desodorante spray, leite de rosas, batons encarnados e a toalete está completa.
Uma mesa gigante recheada de aromas e sabores, café, leite derramando, suco de nossas frutas, cuscuz quente com uma espessa camada de manteiga derretendo, tapiocas molhadas no leite de coco, pão, ovos fritos na banha, fartura, muita fartura vinda do suor do pai mecânico, que casou com a filha do fazendeiro, a mais bonita porém a mais valente.
E lá se espalhavam pela capital Alencarina, caminhavam rumo ao futuro.
Ah ! pobres moços e moças que estavam deixando de ser crianças,
eu ia para o primário dentro dos muros do 23º Batalhão de infantaria, também cheio de árvores gigantes, meio dia, que beleza, o primogênito reconduzia a meninada para casa, casa não, lar, de novo a mesa farta, feijão, arroz, carne, macarrão, salada, maionese, sucos, sucos, sucos, gente faminta e depois satisfeita de bucho cheio.
O mecânico intelectual, engenheiro melhor que o professor Pardal, que mirabolava e inventava suas máquinas e parafernálias, me viu a se balançar no galho do gigante cajueiro, treinando pra morrer, caía mas num morria...
Veio na surdina da manhã, surdina mesmo, pois o quintal era só dele, a mamãe ocupada na cozinha, enquanto aprendíamos o bê-a-bá, pegou uma madeira fornida, passou a plaina e fez quatro buracos com a sua cerra copo, comprou corda de sisal de grande espessura, e fez um balanço de primeira, e o amarrou no galho mais firme do cajueiro.
Depois do almoço ouvi um chamado que só ele e o primogênito usavam.
Cumade Cirninha !
Era eu.
E fui prontamente, sou eu, e fui...
E diante de meus olhos incrédulos, tive a visão do paraíso, um balanço, e o papai ali a me esperar para ajustar a altura, minha Nossa Senhora, menino, eu estava sem acreditar.
E subi naquele balanço que por anos a fio me embalou pra lá e pra cá, meus cabelos arrastavam no chão, enquanto os pés tocavam as nuvens e de noite tocavam a Lua, mas o mundo girou, vieram muitas primaveras mas veio o outono, quando as folhas caem, o primogênito prematuramente se foi, o papai se foi também, e o cajueiro inacreditavelmente nesse ano caiu, ruiu, desistiu de estar ali, sem crianças ao seu redor sem o balanço mágico.
Mas em meus sonhos encontro os dois que ficam a me embalar no balanço que me leva no mais alto dos céus, meus cabelos ainda encostam no chão e meus pés ainda alcançam a nuvens e a Lua...
Então quando anoitece e todos dormem eu acordo para a vida de uma criança feliz, uma criança que ainda esta aqui em meus sonhos encantados.


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Alguém que já sentou na lua.