segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

 A casa da Carapinima

A casa da menina da Carapinima estava bem na curva do trem, o Otávio Bonfim era sua antiga morada, mas seu avô paterno deixou o mundo dos mortos e foi viver entre os vivos.
Mudamos para sua casinha minúscula, com um quintal gigante, cheio de arvores frondosas, no jardim muitas papoulas amarelas, vermelhas e grenás, muitas rosas ciclame, ainda não tinha muro e o telhado era muito baixo.
Nada como uma reforma geral.
Papai e o primogênito disseram...
Vamos fazer o pé direito alto, depois foi que eu entendi, e a casa ficou enorme, éramos só quinze !
Mas a maior atração era o trilho do trem, estávamos separados apenas pela rua, a casa ficava a leste o trem a oeste, e os dormentes ficavam deitados, por cima os trilhos lisinhos com pregos fornidos e marretados, uma simetria que me trazia curiosidade, alegria e medo da morte.
Pois a mamãe dizia.
Se vocês andarem no trilho, vão morrer amassados, não vamos ter o quê enterrar, nem a alma de vocês vai sobrar...
A rua era movimentada, carros, ônibus, carroças, bicicletas, transeuntes,andarilhos, mendigos, vendedores de chegadim, tapioca molhada, peixe, verduras, coentro macaxeira, e a Veinha da carimã passava todo dia, e na nosso rua rua morava até uma Miss.
Mas a minha maior alegria era ele, o TREM, que saía lá da estação do Atarbomfim, e de lá vinha apitando, soltava uma fumaça que se misturava às nuvens, começava devagarinho, os passageiros corriam a pegar nas alças das portas, o condutor apitava,e o povo se adiantava, e o apito soava, soava, soava.
Seis da manhã, piiiiuuuiiiii, eitha lá vem ele !
Da rede quentinha eu pulava, corria lá pra fora, no parapeito da janela eu sentava, e la vinha ele no vuco, já acelerado, levando gente, como se leva gado.
Vermelho imponente barulhento, trepidante, fazia tremer o chão, lá dentro um mundo de ilusão, passageiros, homens feios, bonitos rapazes, moçoilas deslumbradas, crianças danadas, o idoso seguia mascando fumo, aqui acolá uma cuspida pela janela tomava o rumo da cara de quem estava apreciando a paisagem que corria.
O Otavio Bonfim sumia e o Benfica aparecia, o trem alinhava as árvores, acordava as casinhas ao seu redor, o cheiro café alegrava o maquinista, o sinal sonoro parava carros, o trem não pára pra ninguém, cortava o vento, levava gente, caixas, jornal, uma mala cheia de saudades, ás vezes a linda moça chorava com medo de não mais voltar.
A menina ficava somente a acenar, e muitas mãos acenavam para a menina alegrar, passavam ruas, avenidas, pontes, a cidade crescia, a vida ia, voltava e ia outra vez.
E entre as nuvens do progresso ele sumia, o trem da minha alegria.
Então o dia corria, mas sempre ligada ao som do trem a menina vivia, já era de tardinha, lá vinha ele no sentido contrário, retornava trazendo quem podia ou devia voltar, quem não queria regressar, deixando quem não queria ficar lá, o Sol já querendo deitar.
Corria a menina que entrava em casa para ver o trem refletido na parede, bem perto da cumeeira, de cabeça para baixo a passar, as nuvens invertidas, e o povo para o papai acenar.
Era um trem, refletido num mundo bom, num mundo mágico.
O primogênito falou.
Isso é o princípio da independência dos raios e o princípio da reversibilidade.
Que nada !
Era mesmo um trem encantado !
Era um trem, refletido num mundo bom, num mundo mágico, no mundos dos tempos dourados.
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 O menino mais bonito


O badalar do sino da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios me acorda, aliás, nos acordam, as cinco filhas e os oitos filhos do seu Brasil pulam das redes, do beliche, das camas ,e a mãe megera já estava acordada cantarolando a fazer o café da sua enorme prole, somos treze, treze mundos num mundo encantado que era nossa casa com o imenso quintal, muitas roupas no varal, verduras, frutas, e á mesa o cuscuz, tapioca, suco de cajá, caju, mangas cortadas em quadradinhos, bolo de carimã, manteiga Itacolomy, o pão vinha numa cesta de vime atrelada a bicicleta do padeiro, os sacos de leite Cila da bodega do seu Moisés, o cheiro do café formava uma nuvem encantada que invadia as casas vizinhas.
A Justa já acordou...
E mais um dia começava na minha capital Alencarina.
Lá na Carapinima passavam carros, caminhões, ônibus, carroças, bicicletas, e transeuntes, muitos deles perdidos dentro de si mesmos, caminhavam às pressas, outros andarilhos que apenas caminhavam, nossos caminhos sempre subiam para o sul, para o norte íamos muito pouco, pelo menos eu quase não ia lá.
Até que conheci a minha melhor amiga no Movimento das Bandeirantes do Brasil, que morava no Henrique Jorge, nas proximidades da praça principal, e frequentemente ia a sua casa, pegava o ônibus na José Bastos, uma menina sem medos de desbravar lugares distantes.
O caminho para a Escola doméstica São Rafael eu fazia à pé, saia de casa por volta das seis horas e caminhava absorta em meus eus, ia pela calçada à direita até a Treze de Maio, dobrava na Imperador e seguia assim todos os dias.
Até que uma voz me deu bom dia.
Bom dia !
Voltei o olhar, e o céu se abriu...
Olhei de novo girei ao meu redor, o bom dia foi para eu mesma ! 
O menino mais bonito da redondeza do Benfica, aliás, do Jardim América.
Posso acompanhar sua passada ?
A rua é publica.
Ele era lindo demais, pele bronzeada, cabelos dourados, olhos de esmeralda, e corpo de estátua grega,
ali, lado a lado comigo, detalhe usava a farda do Capistrano de Abreu, que fica antes do meu destino, para minha surpresa ele continuou a passada e foi comigo até o portão do meu colégio de freiras, as colegas ficaram em polvorosa, e eu admirada, ele voltou a galope para seu colégio ...
Na aula, mitocôndrias, números primos, to be verbs, culinária, recreio, musica, educação física, e ao meio dia, algaravia, corre corre, carros parando para buscar as moças da pseudo elite fortalezense, travando a Imperador, quando saio ao portão, ele estava me esperar.
Bora, vim te buscar !
Viemos seguindo de volta, rumo á Carapinima, na bifurcação da Tereza Cristina com o final da Imperador, uma casa de muro baixo com jardim florido, de papoulas, jasmim, pitangas, muitas flores.
De repente ele pula, rouba uma rosa La France encarnada e aveludada, pega em minha mão e desatamos numa carreira até a Dom Jerônimo.
Os corações a pulsar desordenadamente, o trânsito frenético e nós ali, sentados na coxia tomando fôlego para seguirmos em em frente, querendo que o caminho que se findava, aumentasse alguns kilômetros , e assim chegamos ao meu portão, nos despedimos com um doce olhar, fiquei observando até ele sumir dobrando á esquerda da Padre Cícero, rumo a rua Ana Neri, e o dia passou em doces nuvens extraordinariamente azuis.
Eu dormira mais cedo para que o amanhecer viesse logo, e dessa vez eu já estava acordada antes do sol, antes de se formar a nuvem feita do cheiro do café, minha farda estava impecável, engoli o café freneticamente, calcei meus sapatos de boneca ornados em meias brancas, penteei o cabelo deixando minhas madeixas livres de fivelas, saí ao portão exatamente às seis horas, e lá estava ele encostado no muro do trem da RFFSA que ergueu-se à frente de nossa casa.
O sol refletia-se em seu cabelo de surfista da praia da AABB, e fomos caminhando e desapareciam os transeuntes, carros ,caminhões, bicicletas, no caminho só nós dois.
O menino mais lindo da redondeza ao meu lado, muito bonito para mim.
E assim nossas conversas iam do que mais gostávamos até, qual eram nossos sonhos mais impossíveis, passeios de bicicleta até a praia do futuro em sua magrela e eu na Monark Jeans, o Cine São Luíz, pegando jacaré nas ondas da praia de Iracema, passeio na feirinha de Nossa Senhora Fátima, as aulas de natação no BNB Club, uma vida de adolescentes sadios.
Uma viagem longa e repentina, por ordem da mãe megera nos separou por uma ano.
Na volta fui a sua procura.
Cadê o Nirês ?
Suicidou-se !
Você não quis ele,e ele desistiu da espuma das ondas, do Sol, da vida.
E eu que pensava que era feia para o menino mais lindo daquelas redondezas...
A flor La France encarnada e aveludada ainda existe, dentro de um livro escolar, testemunha da inocência de dois jovens que por timidez não deram sequer um beijo em seus longos passeios encantados.