sábado, 18 de março de 2023

 Lá pela década de sessenta, minha família morava na Justiniano de Serpa, mais precisamente na vila Nossa Senhora das Graças, bem perto da igreja Nossa Senhora das Dores, reduto das moçoilas e rapazes enamorados, que apenas se olhavam e já era o bastante para dormirem sonhando com o amor de suas vidas.

A vila tinha o formato da letra T, e nossa minúscula casa era a última á esquerda, o patamar era alto uma porta e uma janela, cômodos pequenos e quintal microscópico, e lá vivia nossa prole, a mamãe era a mais bonita, invejada, valente e caridosa, o papai trabalhava com o Chico nunes, a vizinhança Eriberto, Dona Suzi, Anselmo, Novo, Neca, Boneca, Dona Mariquinha, Toscano, Dona Judith, Mazé, Francisco, Zenilde, Seu Jorge...
Até que o Cabra Véi, morreu, era assim que a mamãe chamava meu avô Chiquim, então herdamos a sua casa lá na Carapinima.
O boi morre, a bem do urubu.
E o nosso universo mudou, o meu nem tanto, o de meus irmãos e irmãs, que foram forçados a deixar para trás sua rua, as quermesses de Santo Antônio, as tertúlias, e os amores impossíveis, e lá se foram eles para a Carapinima, trazendo em sua bagagem o pesa da saudade e a vila também entristeceu com a saída daquela turma animada.
E o caminhão FNM verde parou em frente a casa que seria nosso novo mundo, muitas árvores, frutas, bambuzal e o fantasma do vovô que nunca saiu de lá, a Tia Helena que era mais bonita que aquela, lá de Tróia se foi, foi ser gente lá no Rio de Janeiro, deixando seu único irmão com sua imensa meninada.
A casa era gigante, a casa da vila cabia em nossa varanda, e assim começaram uma reforma que a deixou maior e haviam duas entradas distintas, as moças e as meninas eram proibidas de entrar pela oficina, bem como seus empregados não ultrapassavam a fronteira, muito precavido, pois elas eram muito belas.
E tudo melhorou, o papai virou autônomo e fez sua fama de excelente mecânico espalhar-se e os anos foram passando, muitas luas vieram, e fomos muito felizes ali naquele lugar encantado.
Mas num dia nublado, chegou por lá um monstro chamado progresso, que veio carcomendo as casas, a bodega do seu João, as coxias, o campinho do racha, ergueram a linha do trem, e colocaram um tal de viaduto, seu brasil observando o levante da obra, falou ao engenheiro.
Esse cálculo esta errado.
O engenheiro muito educado, pediu que explicasse o porquê do erro, e com a erudição autodidata do simples mecânico, dos fatos que poderiam vir a acontecer, ele foi promovido a encarregado de erguer a ferragem, daquele monstro que dizimou nossa vizinhança.
Mais luas vieram, e fomos crescendo e perdendo a graça da vida pueril, o primogênito morreu, todos morremos juntos, não lhe foi permitido terminar de criar seus filhos, o papai já senil queria atravessar o século, atravessou, mas abriu-se o portal que o levou, morremos mais uma vez, o Lossinha foi ceifado da vida, a mamãe não superou tanta saudade e a dor de esperar pelo filho que estava perto e infinitamente distante, e seu coração de leão amansou, e dormindo amanheceu, ela morta acordou, ela nos tornou orfansãos de pai, e mãe.
E de novo veio o monstro do progresso, mais violento e letal chamado METROFOR, que num cálculo errado fez uma curva justamente em cima da casa da Carapinima, e o papai já não estava lá para corrigir esse erro lástimável.
E surguiu entre as brumas da poeira de nossa casa que ruia, o METRÔ, uma coisa sem o charme da velha máquina da RFFESA, sem o som do atrito das rodas de ferro no próprio ferro, sem a algaravia das crianças a correr pelos vagões, sem o apito, sem os vendedores de chegadim, tapioca, picolé de castanha, pirulito de mel, sem o desgosto de levar uma cusparada ao botar a cabeça para fora da janela, do idoso que mascava fumo, sem poder pular antes de chegar a estação de Maracanaú.
O metro carrega passageiros, presos em seus celulares, fones de ouvidos sem fio, não se olham, não sorriem, não roubam beijos, e nem vivem, como viveram os jovens na nossa Terra Alencarina, na nossa Fortaleza Antiga.




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Alguém que já sentou na lua.