segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Belo rapaz


Nesse solo fértil me criei,à sombra do bambuzal,me abrigava do sol, lá na Terra da Luz, corria pra lá e pra cá,e via lentamente a vida passar, muitas crianças ao meu redor, a caçula de oito irmãos, e um cordão de ouro um ano mais novo.
Não havia quintal mais sortido, cajús, azeitoneiras, genipapos, coqueiros, siriguelas, canapus, mangueiras, jambos, cajás, só não tínhamos sapotis, mas esse pequeno detalhe, resolvíamos roubando os da vizinha.
E ao entardecer, o cheiro da sopa de galinha, que lá chamamos canja, tomava conta da vizinhança, e o pão da padaria da Parangaba, a leiteira apitando, e chamando a meninada à mesa sentar-se, lá fora o trânsito em seu eterno vai e vem.
Na TV passava Escrava Isaura, a gente sofria junto com ela, depois da janta, as estrelas não se atreviam a iluminar o quintal encantado, que de noite ficava mal assombrado, o vovô Chiquim, passeava naqueles arredores que era seu, nos arrepiávamos só em pensar ver a alma dele que passeava entre as árvores por ele plantadas.
A Lua não aparecia, ela não se atrevia atravessar a copa fechada, só para aumentar o medo da meninada, e os mais velhos completavam a trilha do medo com suas histórias fantásticas, e de vez em quando uma rasga mortalha, rasgava o vento sombrio da noite, e um frio no cangote era inevitável.
E naquela roda todos colavam uns nos outros, e a brisa noturna se tornava gélida, de vez em quando os pássaros, batiam em revoada, nos fazendo gelar o sangue, e o espírito do vovô tomava forma.
Um moreno alto, mais de dois metros, olhos vivos de cor púrpura, braços cabeludos, unhas enormes,em formato de foice, grandes madeixas prateadas brilhantes, corpo esguio, quase esquelético, e tinha hálito de fumo de rolo bem mastigado, o homem era mesmo do outro mundo.
E as histórias eram contadas num tom misterioso e cheio de sons alucinantes, e as crianças ficavam envolvidas naquela magia, e ninguém corria, e assim a noite esperava um pouco mais, até o sino da Igreja dobrar o carrilhão doze vezes, era o momento de ficar em silêncio, e deixar a meia noite passar sossegada, uma chuva fina, espalhava aquela turma, que corria para a alcova e se escondia nas redes, enrolando os pés no lençol, e o sono vinha cheio de boas assombrações.
E ao crescer, e entrar no mundo triste dos adultos, volto àquele lugar encantado, levo comigo meus rebentos, para mostrar como era bom viver lá, quem sabe um dia o vovô, apareça a mim e eu descubra que ele era um belo rapaz.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

O dia das crianças poderia mesmo ser eterno, poderia nunca acabar, as crianças poderiam nunca crescer,, poderiam nunca conhecer a maldade humana.
O dia das crianças seria sempre dia das crianças.
E aqueles que esqueceram que um dia foram também crianças, não deveriam ter o poder de desmanchar,o curso da vida, desviar caminhos, afastar crianças de crianças, e forçá-las a simplesmente crescer.
O balanço vai e vem, vai e vem, mas vai e vem somente empurrado pelo vento, que sopra frio, que move as árvores, revolve a terra, espalha folhas, e desmancha as flores, o sol ajuda-o a tornar aquele lugar antes cheio de algarravia, barulho, confusão de vozes, e passos pueris que corriam pra lá e pra cá, indo e vindo, onde se ouviam sorrisos e canções, num lugar qualquer.
E o encanto daqueles sorrisos largos, apagou-se, aliás foi apagado, por um mundo adulto, de grandes cabeças ocas, mas cheias de maldade, recheadas de pensamentos torpes, que ardiam em cobiça por algo,nunca conquistado, mas muito desejado, o espírito do mal, que possuía um sorriso alvo e largo, mas que no fundo de sua alma ,não sorria, os dentes rangia...
O dia das crianças seria sempre dia das crianças.
Se os corações fossem feitos de pedaços de nuvens, de pedaços de maçãs do amor, de pedaços de flor, assim teríamos mais coragem e força de enfrentar qualquer dor...
Um dia seremos anciãos, de pernas capengas, de passos inseguros e limitados, de cabelos prateados pelo tempo, pelo tempo em que perdemos, em sermos criaturas de orgulho acima de qualquer circunstância, devemos sempre manter a fronteira da distância, o limiar entre a vida e a morte, estando vivos num mundo só de adultos, de impuros corações.
E a memória um dia se lembrará que devemos esquecer que já fomos algo, e nada mais restará na imensidão de uma mente esquecida, e se vierem lapsos de lembranças, ouviremos o eco oco, da algaravia, do barulho, da confusão de vozes, e dos passos pueris que corriam pra lá e pra cá, indo e vindo, onde se ouviam sorrisos e canções, num lugar qualquer da mente.
MEDO
Acordei no meio da noite, em um lugar qualquer, não reconheci ninguém, não sabia onde estava minha alma, eu estava oca,sozinha, só havia escuridão.
Só ouvia berros, gente fugindo, caindo ao chão, caindo ao chão de antigas mazelas, de dores, de rios de fortes odores, nem sentia mais o cheiro das flores.
Falsos profetas maculavam corpos inocentes, e eram seguidos por rebanhos de ovelhas, dementes, doentes, de coração ausente.
Uma negra mãe chorava, seu rebento foi arrebentado, outra mãe chorava pelo filho ceifado, outra mãe, outra mãe e outra mãe sem nada, sem corpo, sem restos mortais, sem nada mais...
O medo, tomou forma, era alvo e hediondamente escurecido por dentro, tinha olhos azuis medonhos, lisos cabelos farpados, boca rubra ornada de sangue pueril, coisa que nunca se viu, ou se soube que existiu.
Olhei para mim, e nada vi, só uma sombra errante, uma sombra de vida reprimida, espremida entre o mal e o mal,
e no coração daquele canibal, matar era a coisa mais normal.
Me refugiei na densa bruma, clamei por ele, chamei por Deus...
Deus !
Cadê tu ?
Mamããããe vem me buscar, vem mãe , vem me salvar, não sei sair desse lugar.
Me leva de volta ao útero, me leva pra casa.
Deus, me dá asas !
Cadê meu anjo ?
O sino da igreja não dobra mais, os corpos jazem, é isso que fazem, um mar de gente caminhando para o nada, e nada dizem, nada vêem, nada vezes nada para aqueles que só queriam existir, fluir, amar e evoluir.
O medo, tomou forma, era alvo e hediondamente escurecido por dentro, tinha olhos azuis medonhos, lisos cabelos farpados, boca rubra ornada de sangue pueril, coisa que nunca se viu, ou se soube que existiu.
A sombra consumiu o povo, o povo que não sabia, não sabe e não saberá a força que tem, e aquilo vem levando tudo à sua frente, e as ovelhas dementes, doentes, de coração ausente acreditam que terão o reino prometido.
Quem dera eu não ter nascido, ou quem dera tivéssemos fugido, e em outro lugar vivido, e não conheceríamos aquele, no mal nascido, no mal alimentado, no mal crescido, no mal treinado, no mal doutrinado...
Deus !
Meus !
Teus !
Dormi, para não mais sonhar, não vi a Lua, a rua, só ouvi palavras de ordem naquela desordem de vida, vida espremida,diluída, reprimida, só restos de vida, só restos mortais, do irmão, do padeiro, do irmão do jardineiro, do filho, restos de vidas de um país inteiro.
Autoria ___ Adriana Noronha