sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Razão de continuar ...



O Sol aqui nasce bem antes da hora, e já empurra as nuvens para longe, vem castigando com sua imponente força abrasadora, o semi árido, ouço o aboio daquele que amo
desde os tempos de menina moça, e que desde menino também levanta junto com o Sol, os chocalhos badalando, e o gado seguindo em fila para o curral, e aquela luz intensa atravessa a janela do quarto me forçando também a deixar meus sonhos pra depois, levanto as mãos e agradeço por mais um dia, ligo a TV gigante, mas só tem as mazelas do mundo, mergulho num chuveiro de água quase quente, e a tomada tá desligada...
O ritual de sempre, a blusa branca um jeans, mocassim, livros, gramática, minha latinha de canetas, minha bolsa de caruá, a pasta, as chaves, desço, roubo uma banana e uma maçã na cesta, e vou ao carro, assobio o código secreto, e aquele que levanta antes de mim, suspende a cabeça entre as vacas e me dá um sorriso malicioso e pisca o olho...
Tem café !
Faço as honras e degusto um café doce e quente.
É, tem mesmo um curral com cafeteira e música.
Já vai ?
Vou.
E lá vou eu para o lugar, que me realiza como profissional, os primeiros pedestres, uma galinha cheia de pintinhos de pescoço pelado, patos, gansos,pavões de caldas abertas em sedução às suas fêmeas, revoadas de garças que vão rumo ao Sol, enchendo o azul celeste de tons brancos e minúsculos, revoada de periquitos verdes e azuis, e o caburé que sempre me espera no morão da porteira, um pedaço de estrada de chão, o asfalto que foi a sensação da cidade, apesar de ter apenas em duas ruas, mas os munícipes se sentem numa capital.
E as salas cheia de alunos, de toda espécie, alegres, estudiosos, dispersos, calados, espertos, e aqueles que apenas estão lá, para não estarem em casa, cinco horários, salas cheias de alunos, cheias de tudo...
E a volta para casa, com o Sol mais quente ainda, o asfalto a derreter as esperanças de chuva, transeuntes, bicicletas, um cavalo, a moto comprada num leilão, uma senhora que sempre vem com sua sombrinha cheia de flores, carrega o peso da velhice e suas dores, uma praça recanto de homens ébrios, maltrapilhos e invisíveis, um monte de lindos ciganos, um trem parado, uma fila de banco ao Sol, gente, homens, meninas de shortinho mostrando as bochechas da bunda, vulgarmente sensuais, e outras coisas mais.
De novo retorno à porteira e lá me espera o caburé, guardião de olhos grande, ao longe o bode berra, a poeira sobe, faço a curva devagar, e o carro descansa seu possante motor pouco explorado, pego meus apetrechos, ouço uma voz ...
Vovó chegou !
José corre ao meu encontro, num abraço cheio de coisa verdeira, me abraça e fica calado ele é invocado, o Antônio ergue as mãos a bater palmas ao portão, a Maria vem gritando, abençavovó, abençavovó, abençavovó três vezes,
ainda bem que sou avó, pois se fosse mãe tudo seria diferente.
Pois sou igual àquela por quem chamo megera, que tinha a mão de ferro, metia medo até no cão, seu olhar nos derrubava ao chão, era orgulhosa, caprichosa, dormia com um olho aberto e um fechado, estava sempre alerta, e quase numa fazia uma carinho, e assim nos criou, ela era mesmo muito poderosa.
Por isso vou ser apenas uma avó, vou só amar, coisa que não fui capaz de fazer como mãe, não tinha tempo pra isso, por uma vez em minha vida, vou só cuidar, sem ultrajar, sem vigiar, sem cobrar, sem ferir, sem bater, sem oprimir, sem quase matar.
Vou me despedir de ser mãe, vou ser apenas vovó, mas se tivesse outra chance na vida, queria de novo ter nascido da mesma barriga, da mesma mãe, pois todas as mães são iguais, são odiadas e amadas tal e qual.

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Alguém que já sentou na lua.