Eu morava no Benfica, na rua principal, que cortava
Fortaleza em duas, nosso encantado lugar estava bem dentro do
vuco vuco dos carros que era
incessante, e às seis da manhã já estava banhada, penteada e arrumada em minha farda de saias de
pregas, camisa alvinha, meias brancas e
meus sapatos de boneca, que alias eu adorava, caprichava no talco e na lavanda
York, nessa época não usava baton, eu só tinha nove anos, mas ia para a escola
sozinha, lá na Aldeota, Escolas Reunidas General Tibúrcio Cavalcante que ficava
dentro dos muros do Colégio Militar de
Fortaleza, nós do primário ficávamos bem protegidos.
Depois que o pelotão da Maria Justa estava em ordem, a fila
indiana se dirigia à mesa, o aroma do café se espalhava pela casa, a manteiga
Itacolomy, o cuscuz feito no prato envolvido num pano alvinho, o leite que
sempre derramava, o pão da bodega do Seu João, a algaravia era sempre
interrompida pelas palavras de ordem da matriarca.
E cada qual tomava seu rumo,o Liceu do Ceará, a escola Normal
Justiniano de Serpa, a Escola Doméstica São Rafael, O 23º BC, o Colégio São
Vicente, a Unifor e uma tal de UFBA, Escola de Educação Física do Exército lá
na Urca, havia um que estava perdido no Mundo, mas aí já é outra história, e eu
tomava meu ônibus Parangaba/Aldeota em
frente de casa, e descia na porta do Colégio .
Eu sabia de cor o
itinerário do ônibus que ia pela João Pessoa que passou a chamar-se
Avenida da Universidade, atravessava a Treze de Maio, seguia em frente até a
General Sampaio, dobrava na Praça da Estação e seguia como se fosse entrar pela
porta central da catedral de Fortaleza, chegando quase lá, dobrava na Conde
D’eu , passava rente ao Palácio e Progresso, Imaculada Conceição, atravessava a
Dom Luís e enfim o Colégio Militar.
Até aí tudo bem, mas no meu imaginário de criança curiosa e
atenta às conversas dos adultos, que numa rodada de histórias contadas no
quintal, ouvi nossa empregada Mundira, dizer em bom tom que no dia que
colocassem o último tijolo da Catedral, sairia de lá uma Besta Fera...
Aquilo me encabulou.
Besta Fera?
E assim a cada manhã, entrava no ônibus e sempre tentava
conseguir sentar-me à janela, e naquele movimento frenético do trânsito, botava
a cabeça para fora ao passar pela Catedral e observava o desenvolver daquela
construção, que diziam ter o estilo
neogótico, as torres demoravam muito de ficarem prontas, e a cada dia,
eu olhava, olha, e olhava.
Terminei o primário e nada, entrei pro ginasial, em outro
Colégio, de freira , claro, e nada de terminar, e ficava imaginando que a besta
fera crescia ali dentro, conforme demorava o término da Catedral, no meu
quintal subia na arvore mais alta e ainda não via as torres concluídas, dava
para visualizar pois naquela época ainda não existia a tal verticalização e o
tempo passando e eu crescendo ...
Meu Colégio católico de grande porte, estava ao lado de
outro de grande porte ,mas eram protestantes, a rivalidade era enorme, as
garotas de lá tinham inveja da catedral, dos bispos que frequentavam nossos
corredores e muito mais...
Dom Aloísio Lorscheider
era nosso visitante frequente, o
Pop Star de nossas professoras freiras,
a lá na Escola Doméstica nós meninas estudas e prendadas crescíamos, e eu
sempre a lembrar das palavras da Mundira, nossa empregada.
Hoje me pergunto !
Seria ela crente ?
Sei lá, mas aquelas palavras ecoaram por muito tempo em minha mente juvenil, e nas minhas andanças na
capital Alencarina, sempre passava por perto da catedral, para ver como
estava sua construção, os veículos, os
comerciantes, mascates, turistas e transeuntes sequer erguiam os olhos para observar
as torres cobertas pelos andaimes.
Até que meu irmão preferido me deu uma bicicleta de
cestinha, adorei...
Não sabia ele, que havia me dado liberdade, pois minha rua
era a extensão do caminho que levava á porta principal da Catedral, e eu
deslizava no trânsito em duas rodas, em linha reta até lá, e o tempo ao meu redor
ajudava a girar o relógio de minha vida
de menina moça.
E o grande dia chegou,
dezoito de Dezembro de mil novecentos
e setenta e oito, autoridades, eclesiásticos,
devotos, fiéis, curiosos, imprensa, incrédulos, famílias, as freiras, gente, gente,
romeiros, mirins, mendigos todos lá.
Os vitrais, a nave, o altar, o som do órgão, o Bispo todo
paramentado, a celebração, a emoção, e eu lá, de ouvidos e olhos afiados, os cânticos.
Nos meus ouvidos,
Carmina Burana, O fortuna, mas só nos meus ouvidos, nos dos outros, a Ave
Maria.
Muitas horas de louvores e celebração.
Ao fim de tudo, muitos fogos de artifício, brilho no céu de
Lua cheia, e a ausência da Besta Fera, Deus não permitiu que ela estragasse a
festa.
Papai, a Besta Fera não apareceu.
Engano seu, Cumade Cirninha.
Ela estava lá, dentro
de cada uma daquelas pessoas.
E de nós também ?
Sim.
Mas devemos deixar o Deus
que temos em nós, adormecê-la .
E assim eu cresci, feliz para sempre...
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Alguém que já sentou na lua.