quinta-feira, 29 de agosto de 2019


Eu morava no Benfica, na rua principal, que cortava Fortaleza em duas, nosso encantado lugar estava bem  dentro do  vuco vuco dos carros que era  incessante, e às seis da manhã já estava banhada, penteada  e arrumada em minha farda de saias de pregas,  camisa alvinha, meias brancas e meus sapatos de boneca, que alias eu adorava, caprichava no talco e na lavanda York, nessa época não usava baton, eu só tinha nove anos, mas ia para a escola sozinha, lá na Aldeota, Escolas Reunidas General Tibúrcio Cavalcante que ficava dentro dos muros do  Colégio Militar de Fortaleza, nós do primário ficávamos bem protegidos.
Depois que o pelotão da Maria Justa estava em ordem, a fila indiana se dirigia à mesa, o aroma do café se espalhava pela casa, a manteiga Itacolomy, o cuscuz feito no prato envolvido num pano alvinho, o leite que sempre derramava, o pão da bodega do Seu João, a algaravia era sempre interrompida pelas palavras de ordem da matriarca.
E cada qual tomava seu rumo,o Liceu do Ceará, a escola Normal Justiniano de Serpa, a Escola Doméstica São Rafael, O 23º BC, o Colégio São Vicente, a Unifor e uma tal de UFBA, Escola de Educação Física do Exército lá na Urca, havia um que estava perdido no Mundo, mas aí já é outra história, e eu tomava meu ônibus Parangaba/Aldeota  em frente de casa, e descia na porta do Colégio .
Eu sabia de cor o  itinerário do ônibus que ia pela João Pessoa que passou a chamar-se Avenida da Universidade, atravessava a Treze de Maio, seguia em frente até a General Sampaio, dobrava na Praça da Estação e seguia como se fosse entrar pela porta central da catedral de Fortaleza, chegando quase lá, dobrava na Conde D’eu , passava rente ao Palácio e Progresso, Imaculada Conceição, atravessava a Dom Luís e enfim o Colégio Militar.
Até aí tudo bem, mas no meu imaginário de criança curiosa e atenta às conversas dos adultos, que numa rodada de histórias contadas no quintal, ouvi nossa empregada Mundira, dizer em bom tom que no dia que colocassem o último tijolo da Catedral, sairia de lá uma Besta Fera...
Aquilo me encabulou.
Besta Fera?

E assim a cada manhã, entrava no ônibus e sempre tentava conseguir sentar-me à janela, e naquele movimento frenético do trânsito, botava a cabeça para fora ao passar pela Catedral e observava o desenvolver daquela construção, que diziam ter o estilo  neogótico, as torres demoravam muito de ficarem prontas, e a cada dia, eu olhava, olha, e olhava.
Terminei o primário e nada, entrei pro ginasial, em outro Colégio, de freira , claro, e nada de terminar, e ficava imaginando que a besta fera crescia ali dentro, conforme demorava o término da Catedral, no meu quintal subia na arvore mais alta e ainda não via as torres concluídas, dava para visualizar pois naquela época ainda não existia a tal verticalização e o tempo passando e eu crescendo ...
Meu Colégio católico de grande porte, estava ao lado de outro de grande porte ,mas eram protestantes, a rivalidade era enorme, as garotas de lá tinham inveja da catedral, dos bispos que frequentavam nossos corredores e muito mais...  
Dom Aloísio Lorscheider  era nosso visitante  frequente, o Pop  Star de nossas professoras freiras, a lá na Escola Doméstica nós meninas estudas e prendadas crescíamos, e eu sempre a lembrar das palavras da Mundira, nossa  empregada.
Hoje me pergunto  !
Seria ela crente ?
Sei lá, mas aquelas  palavras ecoaram por muito tempo em minha  mente juvenil, e nas minhas andanças  na  capital Alencarina, sempre passava por perto da catedral, para ver como estava sua construção, os veículos,  os comerciantes, mascates, turistas e transeuntes sequer erguiam os olhos para observar as   torres cobertas pelos andaimes.
Até que meu irmão preferido me deu uma bicicleta de cestinha, adorei...
Não sabia ele, que havia me dado liberdade, pois minha rua era a extensão do caminho que levava á porta principal da Catedral, e eu deslizava no trânsito em duas rodas, em linha reta até lá, e o tempo ao meu redor ajudava a girar o relógio de  minha vida de menina moça.
E o grande dia chegou,   dezoito de Dezembro de mil novecentos   e setenta   e oito, autoridades, eclesiásticos, devotos, fiéis, curiosos, imprensa, incrédulos, famílias, as freiras, gente, gente, romeiros, mirins, mendigos  todos lá.
Os vitrais, a nave, o altar, o som do órgão, o Bispo todo paramentado, a celebração, a emoção, e eu lá, de ouvidos e olhos  afiados, os cânticos.
Nos meus  ouvidos, Carmina Burana, O fortuna, mas só nos meus ouvidos, nos dos outros, a Ave Maria.
Muitas horas de louvores e celebração.
Ao fim de tudo, muitos fogos de artifício, brilho no céu de Lua cheia, e a ausência da Besta Fera, Deus não permitiu que ela estragasse a festa.
Papai, a Besta Fera não apareceu.
Engano seu, Cumade  Cirninha.
Ela estava  lá, dentro de cada uma daquelas pessoas.
E de nós também ?
Sim.
Mas devemos deixar o Deus  que temos em nós, adormecê-la .
E assim eu cresci, feliz para sempre...

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Alguém que já sentou na lua.