Viver nos anos de ditadura para muitos era viver perigosamente, porém a Ditadura no país era mais branda que a ditadura de minha mãe a eterna megera indomável, todos a ela se curvavam, principalmente nós seus filhos e filhas.
Eu era a número treze de uma prole de quatorze, e caçula sempre sofre dobrado ou é cuidado em dobro. Tudo era proibido, e falar palavrão então, era pecado mortal. Assistir Gabriela cravo e canela ás dez da noite era impossível.
Mas eu descobri como fugir da vigilância e desafiar o perigo .A coleção de cor grená estava ali pertinho de mim, na nossa farta e cobiçada biblioteca.
Ler Jorge Amado aos doze anos era assim, uma verdadeira transgressão, lá em casa tínhamos toda a coleção e eu li um a um, claro que na surdina, o palavreado do subversivo e exilado Amado era proibido para os pirralhos, mas eu lia, encapava o livro com florzinhas e arabescos, pra enganar a vigilância.
Capitães da areia foi o que mais gostei, Pedro bala o Chefe do Bando de Pivetes, Dora sua amada menina, João Grande o protetor, o trapiche, o abandono,e assim fui devorando aquelas páginas cheias de emoção e tristezas cotidianas dos meninos de rua lá de Salvador.
Havia porém um dos meninos que me chamou a atenção o Sem-pernas, que possuía uma amargura existencial, sem precedentes, até que ele desistiu da vida, e foi vislumbrar aquela linda vista do Elevador Lacerda, e entre aqueles transeuntes que não notavam sua presença, num suspiro cheio de nada, subiu na mureta e ... “ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço, como se fosse um trapezista de circo.”
E aquela cena nunca mais saiu de minha memória.
E aos quinze anos fui exilada para a Bahia,em mais um capricho da mamãe em janeiro de mil novecentos e setenta e nove, o carro entrou pela única estrada de mão única que levava a Salvador já tarde da noite. Minha primeira visão foi casas minúsculas sobrepostas umas nas outras, parecia uma lapinha.
Puxa vida, só tem favela .
Atravessamos aquela cidade de ruas estreitas e tortas, algumas delas nem passeio tinha,e chegamos na Rua Chile, que diziam ser a mais antiga do Brasil, nos hospedamos no Palace Hotel, ao amanhecer vi Castro Alves, e a Baía de Todos os Santos.
Até que fomos para o apartamento da irmã que eu já havia quase esquecido, lá na Edgar Reis Navarro, nas 7 portas. Na manhã seguinte,peguei minha sobrinha Andrea pela mão, desci, saí a caminhar, passei pela baixa dos Sapateiros e fui caminhando, Barroquinha, Corpo de Bombeiros, eu quis ir ao Elevador Lacerda, e lá cheguei e fui sem medo, não fui visitar o sítio arquitetônico, mas estar in loco e ver a cena do Sem-pernas pulando no vazio, para talvez ter uma morte gloriosa, compensando assim a vida miserável que possuía.
E naquele mesmo mês um rapaz de vinte e sete anos pulou de lá , virando manchete da vida real, imitando a arte de Jorge o AMADO.
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Alguém que já sentou na lua.