sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

O significado de uma rede na vida de um cearense, só um cearense pode explicar.
E lá em casa eram quinze redes, espalhadas por ordem de hierarquia, em suas diversas cores, azul, amarela, quadriculadas, encarnadas, bordadas, feitas no tear, ou à mão...
As moças prendadas e asseadas tinham redes no puro algodão,alvejadas a cada lavada, os armadores em pontos estratégicos, formando losângulos, triângulos ou quadrados perfeitos.
Quando a noitinha vinha, seu Brasil providenciava expulsar as muriçocas, incensando a casa com cascas de cocos secos, não ficava uma sequer, nas alcovas de sua prole numerosa, e os filhos vinham como um bando de pássaros retornando ao seu lugar seguro, após um dia de revoada.
Uma mesa farta, uma toalha bordada, canja, pão, carne moída, muita gente, leite quente, tapioca mergulhada no leite côco, e lá fora o transito louco, muitos carros, ônibus lotados, o primogênito chegando cansado, e um a um entrava em casa trazendo seu leve fardo.
A novela, o Jornal Nacional, a guerra era no Camboja, Nixon, Watergate, Fogo sobre terra, e assim a noite vinha adentrando...
Os rapazes sentavam-se à porta do quintal, rodeados das belas moças, e dos caçulas enrolados em seus lençóis, e contavam histórias fantásticas, assombradas, horripilantes, e nelas o vovô Chiquim era o mais atuante, um espírito andante.
Até que tocavam as doze badaladas do sino da Igreja da Nossa senhora dos Remédios,nos arrepiando a pele.
Não se mexam !
Deixem a meia noite passar...
Se não as almas vão te agarrar.
Dizia o papai.
Ficávamos congelados, meia noite e um minuto, todos nós corríamos para nossas redes, e lá estávamos seguros e guardados, o papai fingia roncar, só pra avisar que estava lá, junto da Justa, guardando nosso sono e nossos sonhos.
E os primeiros raios de Sol vinham com força, traziam os ventos numa brisa matutina, que assanhava os coqueiros, derrubava as folhas do imenso cajueiro, ali naquele encantado quintal no Benfica.
Mais um dia começava, o bando dos pássaros de novo voava, se espalhava pela Fortaleza Terra da Luz, e sabia que ao retornar descansaria em sua rede abençoada.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Por uma vez em minha vida, fui feliz,fui alegre, fui plena.
Por uma vez em minha vida eu vivia.
E naquele lugar encantado, a minha vida fluía.
Eu tinha o papai, a mamãe eterna megera, meus nove irmãos, que eram apenas oito, o outro estava no céu mas era amado do mesmo tanto e minhas quatro irmãs, dez gatos, dez cachorros.
Mais de uma dezena de coqueiros, uma azeitoneira gigante e frondosa, muitas flores, eram grenás, ciclame, vermelho sangue ,rosadas e brancas, um gramado verdim, minha vida era assim...
Nosso lugar encantado fica entre duas avenidas de grande fluxo, num vai e vem frenético de carros e transeuntes apressados,mas ali vivíamos extasiados com nosso alegre viver, estávamos guardados das maldades do mundo.
Nossa piscina era um grande buraco cavado no chão.
Nosso balanço no cajueiro chegava quase perto do avião.
Nossos brinquedos eram feitos pelas mãos mágicas do Seu Brasil,carros e bicicletas com pneus de aço.
Pois enquanto ele trabalhava, butava sintido no som que faziam nossos brinquedos barulhentos, se o som sumia ele assobiava e a gente voltava.
Enquanto isso a megera seguia na sua árdua lida, de alimentar sua matilha, num fogão engenhoso feito de ferro, alimentado com pó de serraria, uma engenhoca que ninguém mais possuía.
E na sua gastronômica alquimia, surgiam cheiros e sabores que invadiam os outros lares e lugares...
Havia todo dia uma grande contenda,sorrateiramente o papai saia flutuando da oficina até a cozinha, e com seu caneco de alumio brilhoso, roubava o melhor caldo de feijão, e sumia feito um gatuno feliz.
Fransquim !
Gritava a megera...
Todo dia era assim nossa doce quimera.
Ao meio dia muita gente falando, pratos enfeitados de flores e laços,depois ficavam cheios de comida feita nas panelas gigantes, muitas colheres, mas éramos obrigados a comer de garfo, etiqueta para dias futuros, dias duros de pobres adultos crescidos.
Depois todos se espalhavam de novo e iam construir seus destinos ou desatinos, pré escola, ginásio, científico, faculdade, quartel.
E a vida corria, o tempo corria, as nuvens passavam, a chuva vinha, o calor voltava, e a gente crescia e não via e o relógio de carrilhão não parava, continuava a empurrar o tempo...
O tempo veio trouxe o vento, e o tempo e o vento afora nos lançou, nos espalhou, uns pra perto ,outros juntos, outros longe, duas que se separam para todo o sempre, coisas da vida de adultos crescidos e dementes.
O preferido Deus levou, o papai demorou mas também foi, o Locinha nos foi tirado, e a mamãe passou para a poderosa o seu fardo, e ela tenta nos manter juntos no nosso lugar encantado.
Por uma vez em minha vida, voltarei ao meu lar, ao meu lugar, mas isso vai demorar, pois preciso me reciclar, e voltar a ser o que fui, pois a vida transformou-me num SER HUMANO LIXO, na verdedeira materialização do Demônio.
Mas isso aconteceu num sonho, hediondo sonho, e lá vou ter que achar o caminho de volta, vou voltar a cantar no Coral da Santa Missa na TV, minha mãe vai me assistir, vou refazer minha Primeira Comunhão, vou buscar tudo que possui, vou me encontrar de novo com todos aqueles que vivi nos bons tempos nos tempos bons.

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Barco a remo
A prole do Seu Brasil e da Dona Justa, era numerosa,e para que os dois pudessem criá-los e também sobreviverem a treze filhos, tinham que mantê-los ocupados.
O amanhecer começava com o aroma lá da cozinha, café torrado e moído na hora, pão quentinho da panificadora Ideal,leite Betânia,manteiga Patrícia de primeira, ovo, batata doce,inhame, bacon tapioca no leite de côco, só assim aguentávamos o repuxe.
Todos viviam interligados os mais velhos cuidavam dos mais novos, a escolinha dentro do 23º batalhão de Infantaria, era o destino dos caçulas até o meio dia, para alívio dos adultos ou quase adultos.
Meio dia a mesa de madeira fornida estava lotada, uns comiam apressados, e nós com folga, depois as tarefas da escola, e depois as tarefas do quintal encantado, os meninos passavam o ciscador, as meninas não faziam força, e nem carregavam peso, colhíamos cajus, ralávamos côco, e depois natação, nadar é preciso.
E os irmãos e irmãs iam contentes nadar na gigante piscina do Naútico,cinquenta metros pra lá e pra cá, o Michael nos saltos ornamentais, eu e o André saltávamos de qualquer jeito, era só subir e pular, e aos treze fui campeã, mas essa é outra história.
O tempo passou, crescemos um pouco mais,e sempre na nossa biblioteca comíamos livros, eu lia os proibidos.
A mamãe te pega !
Pega não, ela tá muito ocupada com as moças bonitas da casa...
Se perguntar o que leio, digo, Poliana.
O livro da vez era Mar morto, a história do Guma, lá em Salvador, onde morava a filha preferida.
E eu e o caçula fomos á Bahia, nas férias de janeiro, entramos de vez no livro do Jorge, o subversivo.
O endereço era Sete Portas, lá nasciam as mulheres mais bonitas, as história do cais do porto, aqueles homens iam ao mar,sob a proteção de Iemanjá, o coração de Guma derreteu-se aos encantos de Lívia, a brisa do mar inebriava quem se atrevia a ler Jorge.
Estávamos passeando por nossa conta, na cidade de São Salvador, feitos dois turistas com pouco dinheiro no bolso, saímos andando e nos deparamos com a Bunda das Baianas.
Bora lá embaixo ?
Vamo !
O elevador Lacerda nos levou até lá, atravessamos a rua, Mercado Modelo um passeio lá dentro, Marinha, e a tarde vindo, sentamos na murreta apreciando o mar, e Sol indo se recolher.
Vamos lá ?
Onde ?
Na ilha !
Bora...
Havia um senhor num barco a remo, um barquinho pequeno, e fomos, a tarde caiu como um encanto, as luzes de salvador acenderam, e fomos, fomos, o frio veio, e o senhor já de idade e robusto, pele bronzeada, mãos calejadas, e uma voz possante, olhos cor de mel...
É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar...
Cantou aquele homem misterioso.
Se lascamo !
Tenham medo não, eu conheço todas essas ondas...
E a Lua prateou nosso caminho, seu reflexo pareciam longos cabelos, tal qual os de Iemanjá.
Me aconcheguei ao irmão caçula,e lembrei, qualquer coisa, a gente sabe nadar, e muito.
E fomos em nossa aventura, até que Itaparica se aproximava, já aportando...
Corram, corram muito, aquele ali é o último Ferry Boat,senão só amanhã.
E corremos como nunca, até que pegamos no último segundo, olhamos para trás,
Cadê o barco ?
Um arrepio duplo !
E voltamos a Salvador,e a Lua prateou nosso caminho de volta, seu reflexo pareciam longos cabelos, tal qual os de Iemanjá.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Viver nos anos de ditadura para muitos era viver perigosamente, porém a Ditadura no país era mais branda que a ditadura de minha mãe a eterna megera indomável, todos a ela se curvavam, principalmente nós seus filhos e filhas.
Eu era a número treze de uma prole de quatorze, e caçula sempre sofre dobrado ou é cuidado em dobro. Tudo era proibido, e falar palavrão então, era pecado mortal. Assistir Gabriela cravo e canela ás dez da noite era impossível.
Mas eu descobri como fugir da vigilância e desafiar o perigo .A coleção de cor grená estava ali pertinho de mim, na nossa farta e cobiçada biblioteca.
Ler Jorge Amado aos doze anos era assim, uma verdadeira transgressão, lá em casa tínhamos toda a coleção e eu li um a um, claro que na surdina, o palavreado do subversivo e exilado Amado era proibido para os pirralhos, mas eu lia, encapava o livro com florzinhas e arabescos, pra enganar a vigilância.
Capitães da areia foi o que mais gostei, Pedro bala o Chefe do Bando de Pivetes, Dora sua amada menina, João Grande o protetor, o trapiche, o abandono,e assim fui devorando aquelas páginas cheias de emoção e tristezas cotidianas dos meninos de rua lá de Salvador.
Havia porém um dos meninos que me chamou a atenção o Sem-pernas, que possuía uma amargura existencial, sem precedentes, até que ele desistiu da vida, e foi vislumbrar aquela linda vista do Elevador Lacerda, e entre aqueles transeuntes que não notavam sua presença, num suspiro cheio de nada, subiu na mureta e ... “ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço, como se fosse um trapezista de circo.”
E aquela cena nunca mais saiu de minha memória.
E aos quinze anos fui exilada para a Bahia,em mais um capricho da mamãe em janeiro de mil novecentos e setenta e nove, o carro entrou pela única estrada de mão única que levava a Salvador já tarde da noite. Minha primeira visão foi casas minúsculas sobrepostas umas nas outras, parecia uma lapinha.
Puxa vida, só tem favela .
Atravessamos aquela cidade de ruas estreitas e tortas, algumas delas nem passeio tinha,e chegamos na Rua Chile, que diziam ser a mais antiga do Brasil, nos hospedamos no Palace Hotel, ao amanhecer vi Castro Alves, e a Baía de Todos os Santos.
Até que fomos para o apartamento da irmã que eu já havia quase esquecido, lá na Edgar Reis Navarro, nas 7 portas. Na manhã seguinte,peguei minha sobrinha Andrea pela mão, desci, saí a caminhar, passei pela baixa dos Sapateiros e fui caminhando, Barroquinha, Corpo de Bombeiros, eu quis ir ao Elevador Lacerda, e lá cheguei e fui sem medo, não fui visitar o sítio arquitetônico, mas estar in loco e ver a cena do Sem-pernas pulando no vazio, para talvez ter uma morte gloriosa, compensando assim a vida miserável que possuía.
E naquele mesmo mês um rapaz de vinte e sete anos pulou de lá , virando manchete da vida real, imitando a arte de Jorge o AMADO.


Aquela cabeça de boi
já tinha cem anos
e estava ali,
observando os tabaréus...
Um vai e vem de gente resignada
que carregava bucapios,
alfojes
e matulão...
Gente que sempre estava preso
preso no curral
no curral eleitoral.
E aquela cabeça de boi sempre ali
naquela parede grená,
observando os tabaréus.
Mas a cabeça do boi
caiu ao chão,aliás não,
ela foi derrubada.
Aquela gente
nem se importou se a cabeça caiu
ou se alguém a derrubou.
E naquela noite cheia de estrelas
seu corpo depauperado
macilento,
esquálido,
uniu-se àquela cabeça centenária.
Sem balançar seu chocalho surdo
ela se foi dali,
atravessou o semi árido
passou pelo agreste
e chegou ao litoral.
Foi para longe daquele curral
vai sentir em seus ossos
a brisa do mar,
sua alma vai retornar.
E ali naquela terra
vão lhe admirar.
e para sempre ela viverá...

quinta-feira, 29 de agosto de 2019


Eu morava no Benfica, na rua principal, que cortava Fortaleza em duas, nosso encantado lugar estava bem  dentro do  vuco vuco dos carros que era  incessante, e às seis da manhã já estava banhada, penteada  e arrumada em minha farda de saias de pregas,  camisa alvinha, meias brancas e meus sapatos de boneca, que alias eu adorava, caprichava no talco e na lavanda York, nessa época não usava baton, eu só tinha nove anos, mas ia para a escola sozinha, lá na Aldeota, Escolas Reunidas General Tibúrcio Cavalcante que ficava dentro dos muros do  Colégio Militar de Fortaleza, nós do primário ficávamos bem protegidos.
Depois que o pelotão da Maria Justa estava em ordem, a fila indiana se dirigia à mesa, o aroma do café se espalhava pela casa, a manteiga Itacolomy, o cuscuz feito no prato envolvido num pano alvinho, o leite que sempre derramava, o pão da bodega do Seu João, a algaravia era sempre interrompida pelas palavras de ordem da matriarca.
E cada qual tomava seu rumo,o Liceu do Ceará, a escola Normal Justiniano de Serpa, a Escola Doméstica São Rafael, O 23º BC, o Colégio São Vicente, a Unifor e uma tal de UFBA, Escola de Educação Física do Exército lá na Urca, havia um que estava perdido no Mundo, mas aí já é outra história, e eu tomava meu ônibus Parangaba/Aldeota  em frente de casa, e descia na porta do Colégio .
Eu sabia de cor o  itinerário do ônibus que ia pela João Pessoa que passou a chamar-se Avenida da Universidade, atravessava a Treze de Maio, seguia em frente até a General Sampaio, dobrava na Praça da Estação e seguia como se fosse entrar pela porta central da catedral de Fortaleza, chegando quase lá, dobrava na Conde D’eu , passava rente ao Palácio e Progresso, Imaculada Conceição, atravessava a Dom Luís e enfim o Colégio Militar.
Até aí tudo bem, mas no meu imaginário de criança curiosa e atenta às conversas dos adultos, que numa rodada de histórias contadas no quintal, ouvi nossa empregada Mundira, dizer em bom tom que no dia que colocassem o último tijolo da Catedral, sairia de lá uma Besta Fera...
Aquilo me encabulou.
Besta Fera?

E assim a cada manhã, entrava no ônibus e sempre tentava conseguir sentar-me à janela, e naquele movimento frenético do trânsito, botava a cabeça para fora ao passar pela Catedral e observava o desenvolver daquela construção, que diziam ter o estilo  neogótico, as torres demoravam muito de ficarem prontas, e a cada dia, eu olhava, olha, e olhava.
Terminei o primário e nada, entrei pro ginasial, em outro Colégio, de freira , claro, e nada de terminar, e ficava imaginando que a besta fera crescia ali dentro, conforme demorava o término da Catedral, no meu quintal subia na arvore mais alta e ainda não via as torres concluídas, dava para visualizar pois naquela época ainda não existia a tal verticalização e o tempo passando e eu crescendo ...
Meu Colégio católico de grande porte, estava ao lado de outro de grande porte ,mas eram protestantes, a rivalidade era enorme, as garotas de lá tinham inveja da catedral, dos bispos que frequentavam nossos corredores e muito mais...  
Dom Aloísio Lorscheider  era nosso visitante  frequente, o Pop  Star de nossas professoras freiras, a lá na Escola Doméstica nós meninas estudas e prendadas crescíamos, e eu sempre a lembrar das palavras da Mundira, nossa  empregada.
Hoje me pergunto  !
Seria ela crente ?
Sei lá, mas aquelas  palavras ecoaram por muito tempo em minha  mente juvenil, e nas minhas andanças  na  capital Alencarina, sempre passava por perto da catedral, para ver como estava sua construção, os veículos,  os comerciantes, mascates, turistas e transeuntes sequer erguiam os olhos para observar as   torres cobertas pelos andaimes.
Até que meu irmão preferido me deu uma bicicleta de cestinha, adorei...
Não sabia ele, que havia me dado liberdade, pois minha rua era a extensão do caminho que levava á porta principal da Catedral, e eu deslizava no trânsito em duas rodas, em linha reta até lá, e o tempo ao meu redor ajudava a girar o relógio de  minha vida de menina moça.
E o grande dia chegou,   dezoito de Dezembro de mil novecentos   e setenta   e oito, autoridades, eclesiásticos, devotos, fiéis, curiosos, imprensa, incrédulos, famílias, as freiras, gente, gente, romeiros, mirins, mendigos  todos lá.
Os vitrais, a nave, o altar, o som do órgão, o Bispo todo paramentado, a celebração, a emoção, e eu lá, de ouvidos e olhos  afiados, os cânticos.
Nos meus  ouvidos, Carmina Burana, O fortuna, mas só nos meus ouvidos, nos dos outros, a Ave Maria.
Muitas horas de louvores e celebração.
Ao fim de tudo, muitos fogos de artifício, brilho no céu de Lua cheia, e a ausência da Besta Fera, Deus não permitiu que ela estragasse a festa.
Papai, a Besta Fera não apareceu.
Engano seu, Cumade  Cirninha.
Ela estava  lá, dentro de cada uma daquelas pessoas.
E de nós também ?
Sim.
Mas devemos deixar o Deus  que temos em nós, adormecê-la .
E assim eu cresci, feliz para sempre...

quarta-feira, 28 de agosto de 2019


Eles estavam sempre ali, por perto, protegendo a menina daquela figura medonha, de palmas de mão brancas, criatura sorrateira, de passos silenciosos, de respiração ofegante e vil.
Aquela alcova de meias paredes era uma cova. 
Ao cair da tarde se entristecia a menina, naquele mundo estranho,ali a Lua se escondia, não brilhava, não vinha...
Tudo lhe foi tirado,pra um inóspito lugar, seu sono foi jogado,o frio da noite gelava,e o pavor estava na sua alma.
Na sua mala ela levara seus fantasmas pueris, seus companheiros de bons tempos, tempos de vida feliz.
E aquela criatura dantesca, disfarçada de branco encardido, tinha uma índole torpe,um sorriso em forma de pontiagudas lanças, que exalava cheiro de enxofre em suas andanças noturnas.
De dia, ser gente,fingia.
A materialização da agonia.
Mas seus espíritos do bem estavam ali, velando, vigiando, butando sentido, e o sono a derrubava, era profundo, e em sonho a menina voltava pra casa de onde nunca deveria ter saído.
Por lá, feliz ela ficava, entrava e saia, sentia o aroma bom dos dias, lá sua vida fluía.
A vela iluminava o caminho de volta, e ela atravessava aquela porta sem tramela, sem chave, uma pesada porta azulada, o chão de assoalho vermelho carmim, onde flutuavam móveis pesados e fornidos, de um veludo mudo.
Mas seu mundo era salvo por seus fantasmas preferidos, que afugentavam aqueles passos silenciosos malditos.
Nenhum mal dura para sempre, mas o mal sempre vai rondar.
Quem viver verá...

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Ciço, o mirim
Meu irmão Reinaldo era alto, louro, robusto e bonito, quando colocava suas calças boca de sino, camisa de crepe branca, sapatos plataforma cuidadosamente engraxados e brilhantes,cabelos ao vento, se aprontava assim, muito alinhado para ir às Tertúlias do Naútico Atléico Cearense, ele fazia o maior sucesso entre as moças da elite. Mas no fim da festa que tocava The Pops,o bonito rapaz voltava pra casa de ônibus, saía na madrugada no fim do baile e ia ao ponto pegar o Parangaba Circular, pra voltar pra Carapinima.
No momento de descer, viu uma criança a dormir no fundo do ônibus, não pensou duas vezes, pegou a criança no colo e levou pra casa. E lá chegando a Maria Justa estava a sua espera.
Olha mamãe, o que eu achei !
Reinaldo !
E ao amanhecer aquela criança foi uma sensação, sete, oito anos talvez, minha idade, o André tinha cinco, virou nosso irmão,só tinha uma diferença, ele era negro, mas a escola era a mesma, o mesmo clube, bicicleta, brincadeiras, roupas, páscoa ,natal, casa da serra, onde nós estávamos ele também estava, seu nome era Ciço, de Cícero, o padre, nosso quintal era nosso lugar.
O ano era 1969, 1970, e assim fomos crescendo juntos, feito três irmãos, os treze filhos viraram quatorze, e a vida fluiu, até que depois de quatro anos Ciço evaporou, sumiu, saiu e não mais voltou, meus irmão o procuraram, não encontraram, a nossa tristeza foi grande.
O tempo passou, novas luas vieram, a brisa da noite não mais o trouxe pra nós, e deixamos de ser crianças para crescer um pouco mais, não tanto, só um pouco...
Quando saia da Escola Doméstica São Rafael, eu esticava as canelas pela Imperador, passava pela Tristão Gonsalves, pegava a General Sampaio e chegava ao Romcy, entrava na Samasa, dava uma olhadinha na Esquisita, Lobrás, tomava um caldo de cana com pastel na Leão do Sul, atravessava por dentro das Lojas Americanas, apressando o enxoval do noivado com um baiano, e voltava pela Guilherme Rocha para a Praça José de Alencar, ia pegar o amarelinho Jardim América,pois me deixava na porta de casa, na Carapinima, que tinha virado José Bastos, por conta do progresso que levou muitas casas de vizinhos e amigos, deixando um viaduto onde ora eram aquelas casas.
Andando absorta em meus sonhos e pensamentos...
De repente ouvi.
Cumade Cirninha !
Parei, olhei ao redor.
Quem me chamou pelo meu apelido ?
Minha irmã !
Adriana, cadê o Andlé ?
Cortou os cabelo...
E diante de meus incrédulos olhos.
Um rapaz alto,robusto, musculoso, de roupas ordinárias, pele escura e dentes muito alvos, ornando um sorriso inconfundível..
Ciço !
Meu Deus, Ciço...
Ciço, Ciço, minha Nossa Senhora, é tu !
E o meu coração disparou em alegria.
E o coração de Ciço abriu-se em choro.
E instintivamente abracei meu irmão de cor, uma moça de família abraçando um mirim, era a imagem que viam os transeuntes.
Eu, abraçava meu irmão.
Tu fugiu, sumiu, desapareceu. Por quê ?
Eu sou do mundo, adorava vocês, mas não me adaptei, e voltei.
Quantos anos ?
Dezesseis.
E tu ?
Dezessete, tou perto de morrer.
E Ciço chamou seus parceiros e avisou.
Gravem a cara dela, quem triscar morre !
Eu mando daqui até a Praça da Estação, venha sem medo, minha irmã...
Nos despedimos num longo abraço, talvez para sempre, e uma noite a assistir a Verdes Mares, Nazareno Albuquerque anunciava a morte do mirim mais famoso do centro da cidade, sob o comando de Assis Bezerra, sucumbia mais uma criança, que só queria ser feliz.
Adriana Noronha.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

O que sonhas ?
O que tu esconde debaixo desses negros e espessos cachos. Será que aí, eu me acho ?
Ou me perco enganchado nesses dois arcos , que tu trazes, pra me confundir.
Ou me denegrir...
E essa boca de vermelho encarnado ? 
Vem, abre teus olhos pro Mundo.
Quero ser enganado ou por tu
encantado.
Me deixa ser teu, ser vagabundo,
vamos vagar nas estrelas,
vamos buscar a Lua, a rua, a tua, vem nua...
Deixa a vida fluir e vamos nos iludir, brindar e nossa vida colorir.
Vem vamos rir de nós, vamos ser o Sol...
Ou ser sóis, só nós dois .
Adriana Noronha


GABRIELA CRAVO E CANELA
Antigamente dez horas da noite já era quase madrugada, muito tarde da noite,as casas de família recolhiam as cadeiras que ficavam nas calçadas e cerravam suas portas, a rua se acalmava,pois a meninada já estava recolhida depois que o Cid Moreira e o Sergio Chapelin diziam " Boa noite " . Começava Fogo sobre terra, nós os pequenos queríamos assistir, a mamãe dizia para dormir, o papai dizia, dexa muié.
Só hoje...
Lembro que a história era sobre uma hidrelétrica, que iria inundar tudo,numa pacata cidadezinha do interior e retratava o crescimento da modernidade urbana em conflito com a tradição rural, era muito emocionante, e sempre o papai nos salvava dizendo .
Dexa, eles assistirem.
Eles tem que assistir, é Amaral neto !
retrucava.
Lembro quando as águas invadiram a cidade e a Nara permaneceu sentada no chão de sua casa até que fosse engolida pelas águas da represa. 
O choro da meninada foi real, uma cena inesquecível, onde o progresso inunda e afoga sonhos e vidas.
É ai que entra minha frustração infanto juvenil, eu queria assistir mesmo era, Gabriela Cravo e Canela.
De jeito nenhum ! 
De novo a megera indomável...
O Dexa, do papai não valia.
Na novela tem muita putaria...
Impossível mesmo. Aqui a gente não falava nem em sombrancelha, só porque tinha cabelo, quem dirá no resto, a repressão era grande, criança era criança.
E dez horas começava Gabriela, seu Nacibe,o Mundinho , o Tonico, e a trama ao redor da sensualidade da protagonista Gabriela,eternizando a Sônia Braga,era imprópria para nós seres pequenos e ainda invisíveis.
Pois tinha um cabaré e o que se passava lá dentro eram coisas indizíveis
Mas eu tive a sorte de ter nascido numa família de jovens intelectuais da resistência estudantil, naqueles tempos obscuros e repressores, a casinha do vovô transformou se na nossa biblioteca, e tínhamos de tudo, e uma coleção de cor grená do Jorge, é, O AMADO.
Foi aí que me vinguei da mamãe, li tudim, tudim mesmo, da Gabriela lá de Ilhéus, claro que, sem aquela trilha sonora que conseguíamos ouvir de nossa alcova.
O que a mamãe não ensinava, pois com certeza sua mãe minha santa avó Justa Amélia, também não ensinou, e eu consequentemente não ensinei a minha prole,eu li nos livros do Jorge, onze no total, abandonei Tereza Batista cansada de guerra no meio, talvez eu retorne e termine a leitura que achei enfadonha, afinal eu só tinha doze anos. 
O destino da vida traçado pela minha mãe, me empurrou pra Bahia, ai aqui casei com um Ramiro, que meus irmão chamam de Ramiro Bastos.
Piso hoje na terra do Amado Jorge, e assim seguirei o rumo das letras, lendo, lendo, e vivendo num mundo encantado que só os grandes escritores tem o poder de criar, reinventar, enfeitar e fantasiar a dura vida real.
Quanto a minha mãe, ela me criou como deveria, e eu não evolui, e fiz igualzinho a ela também fui,sou e serei uma mãe megera.
Quando eu não mais existir, talvez meus filhos e filhas possam me amar como amo minha mãe,depois de morta.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019



Infância lá em casa...
Aquela prole de quatorze filhos, era assim gigante em todos os sentidos, um dos quatorze foi chamado para ser anjo, e aos oito meses foi pro céu, a mamãe sempre falava no Reginaldo, tanto que pariu outro e colocou o mesmo nome, Reginaldo. 
E assim fomos nos criando naquele quintal grandioso, no centro da Fortaleza que crescia verticalmente, mas nós ali no centro da capital Alencarina, tínhamos um mundo só nosso, a casa do vovô Chiquim era assim um lugar meio místico, assombrado,mágico.
As árvores tinham formas estranhas eram quase vivas, é árvores são seres vivos, mas as nossas tinham algo a mais, o cajueiro se espalhava pelo quintal, entrava na terra, saía mais lá na frente, tinha galhos altos, frondosos, robustos, outros galhos esticavam-se, como se tentassem nos manter ali presos naquele circulo, e nos fartavam de cajus sem ranço, e á sua sombra torrávamos suas grandes castanhas, nas brasas de velhos galhos podados, quanto mais podavam mais ele se erguia sobre nós.
O Bambuzal abrigava as almas penadas, aquelas que insistiam em não ir, para o além, de dia brilhavam,à noite nos assombravam, envergavam com o vento frio da noite, e naquela cadência suas compridas e finas folhas faziam um som arrepiante, inebriante, delirante, só os adultos se atreviam em passar por baixo de sua copa no escuro da noite de brisa fria...
Ah ! Os coqueiros, enfileirados bem arrumados, muito altos, caprichosamente carregados, de doces côcos, somente um nasceu diferente, ele deu um nó, é, um nó mesmo,o meu irmão só bebia a água deles, subia desafiando o perigo, nunca caiu, de lá de cima via até lá, na puta que pariu...
A azeitoneira era muito, muito linda, de tronco que não abarcávamos num abraço, minha preferida, lá vivia o melhor amigo que tive na vida, mas só o via em meus sonhos, não sei se realmente ele existiu, ou estava somente no meu imaginário pueril.
A piscina natural, bastava cavar um metro ou dois que vinha a água nos refrescar, os saltos eram mortais, do galho do cajueiro, a meninada não se afogava, senão apanhava, o papai sempre ali a observar, butava sintido, sempre alerta.
E assim a vida foi, o tempo girou, o vento nos espalhou, nos fez adultos, a bicicleta de ferro, o carrinho de aço, o balanço, o varal amarrado aos coqueiros, tudo sumiu, a casinha do vovô Deodato ruiu, a casa grande o progresso demoliu, até a nossa rua desistiu de prosseguir, um viaduto a roubou, um metro a concretizou, não se ouve mais a algaravia da meninada, é uma rua civilizada, sem cor, sem crianças, sem o ardor da juventude militante daqueles tempos subjugados vigiados.
Mas fomos felizes, e nossas baterias foram carregadas para vivermos eternamente, sem nos esquecermos do quão fomos maravilhosamente bem criados, apesar das surras da mamãe, pé de galinha não mata pinto, e da mente fértil do papai que sempre ´providenciava um brinquedo que criança nenhuma no Benfica possuía, só nós os filhos e filhas do Seu Brasil.
O quintal ainda é nosso e continua a nos esperar, e ainda é assim um lugar meio místico, assombrado,mágico.

sábado, 27 de julho de 2019



Ciço, o mirim
Meu irmão Reinaldo era alto, louro, robusto e bonito, quando colocava suas calças boca de sino, camisa de crepe branca, sapatos plataforma cuidadosamente engraxados e brilhantes,cabelos ao vento, se aprontava assim, muito alinhado para ir às Tertúlias do Naútico Atléico Cearense, ele fazia o maior sucesso entre as moças da elite. Mas no fim da festa que tocava The Pops,o bonito rapaz voltava pra casa de ônibus, saía na madrugada no fim do baile e ia ao ponto pegar o Parangaba Circular, pra voltar pra Carapinima. 
No momento de descer, viu uma criança a dormir no fundo do ônibus, não pensou duas vezes, pegou a criança no colo e levou pra casa. E lá chegando a Maria Justa estava a sua espera.
Olha mamãe, o que eu achei !
Reinaldo !
E ao amanhecer aquela criança foi uma sensação, sete, oito anos talvez, minha idade, o André tinha cinco, virou nosso irmão,só tinha uma diferença, ele era negro, mas a escola era mesma, mesmo clube, bicicleta, brincadeiras, roupas, páscoa ,natal, casa da serra, onde nós estávamos ele também estava, seu nome era Ciço, de Cícero, o padre, nosso quintal era nosso lugar.
O ano era 1969, 1970, e assim fomos crescendo juntos, feito três irmãos, os treze filhos viraram quatorze, e a vida fluiu, até que depois de quatro anos Ciço evaporou, sumiu, saiu e não mais voltou, meus irmão o procuraram, não encontraram, a nossa tristeza foi grande. 
O tempo passou, novas luas vieram, a brisa da noite não mais o trouxe pra nós, e deixamos de ser crianças para crescer um pouco mais, não tanto, só um pouco...
Quando saia da Escola Doméstica São Rafael, eu esticava as canelas pela Imperador, passava pela Tristão Gonsalves, pegava a General Sampaio e chegava ao Romcy, entrava na Samasa, dava uma olhadinha na Esquisita, Lobrás, tomava um caldo de cana com pastel na Leão do Sul, atravessava por dentro das Lojas Americanas, apressando o enxoval do noivado com um baiano, e voltava pela Guilherme Rocha para a Praça José de Alencar, ia pegar o amarelinho Jardim América,pois me deixava na porta de casa, na Carapinima, que tinha virado José Bastos, por conta do progresso que levou muitas casas de vizinhos e amigos, deixando um viaduto onde ora eram aquelas casas.
Andando absorta em meus sonhos e pensamentos...
De repente ouvi.
Cumade Cirninha !
Parei, olhei ao redor.
Quem me chamou pelo meu apelido ?
Minha irmã !
Adriana, cadê o Andlé ?
E diante de meus incrédulos olhos.
Um rapaz alto, musculoso, de roupas ordinárias, pele escura e dentes muito alvos, ornando um sorriso inconfundível..
Ciço !
Meu Deus, Ciço. 
E o meu coração disparou em alegria.
E instintivamente abracei meu irmão de cor, uma moça de família abraçando um mirim, era a imagem que viam os transeuntes.
Eu, abraçava meu irmão.
Tu fugiu, sumiu, desapareceu. Por quê ?
Eu sou do mundo, adorava vocês, mas não me adaptei, e voltei.
Quantos anos ? Dezesseis. E tu ? Dezessete tou perto de morrer. 
E Ciço chamou seus parceiros e avisou.
Gravem a cara dela, quem triscar morre !
Eu mando aqui e na Praça da Estação, venha sem medo, minha irmã.
Nos despedimos num longo abraço, talvez para sempre, e uma noite a assistir a Verdes Mares, Nazareno Albuquerque anunciava a morte do mirim mais famoso do centro da cidade, sob o comando de Assis Bezerra, sucumbia mais uma criança, que só queria ser feliz.
Adriana Noronha.
Ser uma moça de família lá no Ceará dava trabalho, e quando essa moça tinha oito irmãos,aí sim piorava o X da questão, sempre tinha aquela vigilância... Ou melhor dizendo aquele cuidado.
Lá no Benfica o Sol insistia em nos acordar cedo demais,logo já eram seis horas da madrugada, o som dos pneus no asfalto da Carapinima faziam menos barulho que as alpercatas do papai, pra lá e pra cá, o tilintar das panelas láááá na cozinha, de vez em quando caía uma tampa de panela no chão, Ah quase ia esquecendo, a mamãe tinha uma leiteira que não derramava o leite, a leiteira apitava, piiiiiiiiiiiiiiiiiiii, a rapaziada saltava das redes, as moças saiam das redes lânguidamente, e nós os pirralhos éramos simplesmente derrubados, ACORDA...
E a lida diária começava, todos aos seus caminhos, as moças normalistas com suas saias grená, blusas brancas e meias 3/4 seguiam para o Justiniano de Serpa, pegavam seu ônibus ali na frente da Motoclínica que ficava na avenida da Universidade com Padre Cícero, seguiam em linha reta, desciam na Praça José de Alencar, pegavam a Guilherme Rocha, e na esquina do Excelsior Hotel o vento fazia um grande favor aos rapazes que seguiam para o Colégio Militar de Fortaleza, levantava a saia grená de listras brancas e paralelas,deixando suas faces rubras de rosa, uma sensação para os galanteadores sortudos. 
As normalistas eram lindas, moças prendadas que já possuíam suas paixões guardadas no coração, e no colégio que formava professoras, muitos corações enamorados, num colégio só para moças, ouviam-se muitos suspiros.
Aquela que tinha a sorte de namorar e noivar, tinha o árduo desafio de bordar o enxoval, exigência da mãe e das tias, e o tempo livre era dedicado às linhas, agulhas, etamines, cambraias, tecido de puro linho um ponto, um nó, outro ponto, e de suas mãos surgiam o encanto, o bordado pronto, ia pra bacia,água limpinha, sabão Pavão de côco, eram mergulhados num mingau feito de goma, estendido no varal e depois de secos um ferro à brasa com gotas de patchouli, abrilhantava os lençois com monogramas, toalhas de mesas temáticas de natal, páscoa, São João, panos de pratos, estolas, enxoval pra noivo nenhum botar defeito.
E assim elas cumpriam o seu ritual, e todas as moças daquela casa casaram, e o ritmo seguia, para cada uma que se apaixonasse não tinha como escapar de virar uma bordadeira cearense, e naquele tempo as serestas surgiam ao anoitecer, violão à luz da Lua, ali no meio da rua, em plena Carapinima, os rapazes cantavam suas melodias para as meninas.
Um dia um rapaz apaixonado pela mais velha cantou Always in my hearth, o marmanjo cantou em inglês, até o papai apreciou,e a Lua brilhou mais dourada naquela noite, lá dentro de casa as moças inebriadas com a audácia e astúcia do jovem e belo oficial, aliás aspirante, que também aspirava casar-se com a mais bonita.
E tudo silenciava para ouvir aquela canção de amor, até as lâmpadas dos postes ficavam a meia luz, para não ofuscar o brilho da Lua, a harmonia da rua, a brisa vinha suave, o amor fluía e invadia tudo e todos sentiam o prazer de viver nos bons tempos de outrora, os rapazes se retiravam quase ao amanhecer da aurora.
Mas o tempo veio, soprou pra longe aquela moça de longos cabelos dourados, foi estudar na melhor universidade longe dali,e aquele fado encantado ecoa em suas lembranças, dos bons tempos de menina moça, cheia de encanto e esperança, tudo acontecia ali bem pertinho, lá na Carapinima...


Natal na Carapinima
O dia amanheceu assim , meio propício ao colorido das luzes de Natal, e o vuco vuco, das moças da Carapinima, lá no Benfica começou cedo, ao som na radiola ,a canção falava assim " menina que mora na ladeira,passa, passa, passa e desce a ladeira sem parar ". 
Mas lá nem tem ladeira !
Ah, isso era só um detalhe, e a música seguia, mas elas, as moças do Benfica nem a ouviam, pois o alvoroço seria por conta da compras de natal ,de fim de ano, e o seu Brasil havia liberado uma grana bacana para as indumentárias, e para a ceia de natal, e lá se foram elas...
O ônibus escolhido foi o amarelinho Jardim América Centro, isso mesmo, tínhamos o luxo de escolher qualquer um, em nossa porta passavam vários, e as moças bonitas em seus vestidos de cinturas marcadas, seguiam rumo ao centro lá na Praça José de Alencar desceram, e começaram a bater perna, na Casa Blanca comprariam os tecidos,e assim seguiu, Casa da Bordadeira, Casas Pernambucanas, os brinquedos lá no Romcy, A Esquisita os sapaaaaatos, Samasa tinha utensílios domésticos, e as lojas de aviamentos mas sortidas, e os tecidos eram escolhidos com muito cuidado e sem pressa, Laise, linhos, brim, opala, sianinhas, fitas, gorgurão, botões, lá vem mamãe, colchetes,,linhas, muitas linhas.
A do meio sugeriu, que um pastel com caldo de cana, cairia bem, uma parada na Leão do Sul tradição e paquera, e na placa dizia: a zeitona do pastel tem carroço, e lá os rapazes se apraziam em olhares fortuitos direcionados àquelas moças bonitas e prendadas do Benfica.
E de volta a odisséia, lá iam elas cheias de pacotes, embrulhos, sacolas,sem esquecer de passar no Mercantil São José e comprar o peru, uvas passas,e os apetrechos da mesa natalina, e no coração a ilusão de vestir os irmãos e a caçula de príncipes e princesas, e no caminho de volta o contentamento e os planos, de botar a máquina da mamãe para acelerar suas emoções.
O dia exaustivo, merecia o descanso, e na noite tranquila, o silêncio foi quebrado por uma seresta, onde o rapaz de nome Saraiva cantava, " você abusou, tirou partido de mim abusou", a luz acendeu e as moças saíram à janela, a lua iluminava a Carapinima, que rendeu-se aos encantos do amor juvenil...
No dia seguinte elas formaram o pelotão dos irmãos, medindo ganchos, pernas, cinturas, mangas ,ombros, e eles deveriam ficar ali em banho maria, à disposição das modelistas, brim nos macacões dos meninos, sapatos Bamba, calças boca de sino, sapatos de plataformas e de verniz para os rapazes, vestido de gola de bico inglês, mangas bufantes, para a menina, sapatos de boneca e meias alvinhas.
Nos vestidos das moças do Benfica, bordados caprichados, nervuras, anáguas finas, fitas de cetim, e cinturas bem marcadas, decotes comportados,tons pasteis.
E assim crescemos ao redor daquelas que assumiram os afazeres da casa, ajudando a Maria Justa a criar os treze filhos, naquele universo, onde as mulheres comandavam todos e tudo.
E a máquina do tempo, não pode mais costurar aquelas roupas fantásticas e cheias de magia, que um dia nos embalou os sonhos, o sonho de sermos sempre unidos naquelas linhas, traçadas na máquina da união fraterna...
Fortaleza minha
Meu sonho é voltar pra casa ...
Mas onde ela esta ?
Ali na Carapinima, lá no Benfica,mais precisamente em Fortaleza, no meu Ceará...
Eu andaria pelo trilho com meus irmãos e irmãs , subiria novamente naquele gigante
vermelho , chamado trem, que saía do AtarBonfim, iria pra Maracanaú, e naquela cadência das rodas de ferro nos trilhos, embalaria de novo meus bons momentos de menina feliz,ao chegar lá.
Pularia do trem, e cairia de novo , tentando imitar meus irmãos ao chegar
à estação .
E ao chegar ao portão de minha casa, viria os meus irmãos e irmãs , avelha placa da oficina , O Chico Brasil , ainda estaria a balançar junto com o vento ...
Minha bicicleta estaria a me esperar , para as ruas asfaltadas mais distantes desbravar , e ir direto ao mar , amar o mar o meu verde mar ...
Mergulharia naquelas brancas ondas , sentiria de novo o calor intenso , e
a minha pele bronzear .
E lá na escola , desfilaria feliz com meu sapato de boneca preto e brilhante ornado de meias alvinhas, diante de minhas arqui inimigas , e vigiaria as amigas fumando durante o recreio, em cima do pé de jambo .
Abraçaria a própria irmã Ana Maria.
Ela era mesmo uma megera, ou eu é que seria a fera ?
Ah ! Acho que não , eu só era , feliz ...
Me escondia atrás do piano , fazia xixi na piscina ,na sala de aula me concentrava só quando precisava, no ginásio jogar, mas se queria me salvar , era na capela que ia orar , só Deus e eu .
Na volta pra casa Imperador sentido Carapinima, o trânsito fervia e fluía,sempre na bicicleta de cestinha Jeans,as vezes um assobio, um transeunte falava gostooosa, um carro ou outro buzinava, e as vezes um carro parava e deixava eu seguir...
E lá em casa, me esperava o melhor feijão, carne de primeira, arroz com cenoura,macarrão ao alho e óleo e suco da fruta da goiabeira .
Minha mãe alegre e satisfeita olhando todos os bons frutos da sua colheita, chegando um por um,do preferido ao caçula.
E aquele cheiro do Cubano que saía da caixa de madeira e ia relaxar o Brasil , o Seu Brasil ,o papai, que após o almoço tirava um cochilo em sua cadeira de couro e madeira ...
Meu sonho é voltar pra casa
Mas ela não esta mais lá .
O tempo passou , uma brisa a levou , e com a brisa se foram os tempos de paz,
se foram todos , todos .
Se foram nós .
E o que foi uma vez uma vida ...
Transformou-se numa aventura, de atravessar fronteiras e talvez lá não chegar,por conta da maldade humana, que nos priva de voltarmos ao nosso encantado lugar.
Devolvam o meu Ceará.
Tirem das trevas a Terra da Luz.
Adriana Noronha
Tudo outra vez
O tempo veio, o tempo foi, me fez crescer, e pra longe me levou, um dia asaudade me empurrou de volta.
Ei, eu vou ali.
Vou fazer meu coração pulsar alegre, vou lá no Ceará...
E fui.
Mas ao chegar eu vi a minha casa no chão, a casa em que cresci , lá naCarapinima, cheguei tarde e não deu tempo de pegar um pedaço sequer do reboco ou um caco de telha, ela ruiu,não achei nada mais não.
Onde ficaram as panelas,
as cadeiras,o baú da vovó,
os livros e a nossa Enciclopédia,
e as minhas bonecas de pano,
a lata da farinha, do feijão,
o fogão,
a mesa gigante onde a mamãe nos serviu o leite e o pão,
o pé de jambo ,
o cajueiro,
a azeitoneira onde subia todas as noites a sonambular,
os pés de coqueiros que sustentavam as roupas da meninada no nosso imenso e colorido varal ?
Meu Deus, cadê eu, minhas irmãs e meus irmãos !
A oficina do Seu Brasil !
Senti um calafrio e calei , mas queria mesmo era gritar,berrar.
Então só fiz chorar, e minha ausência lamentar.
Um algoz chamado progresso em forma de metrô matou o trem do Otávio Bonfim e engoliu vorazmente um micro mundo em beneficio do mundo macro .
Mas posso reconstruir tudo outra vez ,
a algaravia e as arengas da meninada,
o cheiro delicioso do café, do leite e do cuscuz que vinha da cozinha,
os latidos misturados aos miados dos gatos ,
ouvir, Menina da ladeira na radiola,
ver o florescer das papoulas,
subir e arrancar as frutas das árvores ,
ouvir o som do sino da igreja de Nossa Senhora dos Remédios a nos chamar a rezar .
As brincadeiras de roda,o pega pega,
as estórias de terror contadas no escuro do quintal ,
a vela acesa dentro da lata ,
o balanço no cajueiro indo e vindo ,
o coral do ronco de todos a dormir ,
o terço gigante pendurado na parede ,
o presépio, a arvore enfeitada com algodão.
E o melhor de tudo andar pela nossa casa de paredes alvas e cheias de desenhos infantis pueris ,
,roubar as garrafas de cajuína que curtiam no telhado,
entrar pelas portas sem ferrolhos pois nada ficava trancado.
Eu fecho os olhos e colho tudo de bom que lá existiu ,
felicidade assim nunca se viu ,
minha vida não se perdeu e tudo que vivi foi o que valeu ,
e lá no Benfica, eu começaria tudo outra vez ...
Adriana Noronha .
Nos tempos de criança, éramos treze, de uma prole de quatorze filhos e filhas do Seu Brasil e da Dona Maria Justa, lá na Carapinima.
Hoje adulta descobri como a mamãe, pode criar tantos meninos e meninas.
De manhã papai saía pela casa a arrastar sua alpercatas, para nos acordar, eram quinze redes espalhadas por ordem de hierarquia, e ao levantar tínhamos que enrolar as redes, para nossos anjos da guarda levantarem também junto conosco.
A correria ao banheiro era grande, e também existia a separação de classes, primeiro as moças, depois os rapazes, e por último nós os pirralhos...
Enquanto havia uma grande algaravia entre nós, lá da cozinha, os cheiros que nos encantava tomava conta da casa, da rua, da vizinhança, uma toalha de Ana ruga vermelha cobria a grande mesa, café leite, pão, cuscuz, mingau de carimã, e o horrível e obrigatório mastruz com leite,eeeeeca, se quissésemos, morrer era só não beber...
E todos seguiam seus destinos, e o meio dia passava rápido, e de novo o mesmo alvoroço no almoço, depois fazer as tarefas da escola, e as de casa, era muita coisa pra arrumar, os homens varriam o imenso quintal, as moças lavavam as roupas, muita água, sabão e um imenso e psicodélico varal, a farda do primogênito tinha um lugar especial, secava á sombra do bambuzal.
E ás cinco da tarde todos á postos sob o comando do artista da casa o Reinaldo, sungas, maiôs olímpicos, toalhas na mochila, saímos pela Avenida da Universidade, pelo fundo do nosso encantado quintal, pulávamos a calçada do Mira e Lopes, ordem da mamãe, senão os doidos podiam nos puxar lá pra dentro. E ai pioraria a situação deles, pois loucos éramos nós...
Nos benzíamos em frente a igreja de Nossa Senhora dos Remédios.
Quebrávamos á esquerda na Reitoria, e seguíamos em fila indiana pela Treze de Maio, um brincava dali, outros corriam deixando os pequenos por último, e esperavam na esquina da Concha Acústica com a rua Nossa Senhora dos Remédios, e faziam RÁÁ, susto da porra, ai que ódio...
Antigamente as pessoas eram de bem.
Hoje são de bens !
O padeiro deixava o pão nos muros que eram seguramente baixos, e o leiteiro fazia o mesmo ritual, e no muro ficava até o jornal.
E assim seguíamos, em frente, Praça da Gentilândia, EscolaTécnica Federal do Ceará, pegávamos a calçada do Touring Club, e andávamos em paralelo ao 23 BC, e dobravámos para o Maguary.
Cujo Diretor era o meu padrinho o homem mais lindo de Fortaleza, Oscar carioca Alencar.
A bença meu padrinho !
Deus te abençoe, Cumade Cirninha.
E pulávamos na piscina para treinar até as oito horas da noite, sem parar pra descanso, e suávamos dentro d'água.
Depois de volta pra casa, moídos, cansados e famintos, a fila ia se arrastando de volta, ai Meu Deus, como nossa casa ali pertinho, tinha ficado lá longe...
Voltando ás avessas, Touring Club, Escola Técnica Federal,Pracinha da Gentilândia, e um quarteirão razoavelmente pequeno, e naquela casa de esquina de muro baixo, um pacote de pão da Panificadora Ideal, duas garrafas de vidro com leite, o Jornal O Povo,e o Tribuna do Ceará, ali no muro intactos, desde a hora em que fomos pro Maguary...
Nos olhamos assim ressabiados, e embebidos em nossa fome, viramos inocentes jovens meliantes.
Vão na frente, corram e me esperem na outra esquina.
Falou o Reinaldo !
E assim fizemos, corremos...
E lá vem ele com pão, leite, e muita informação, no caso dos jornais.
Sentamos no gramado da Reitoria e degustamos a prova do nosso crime corporativo.
Bora negada !
E no caminho de casa, um lembrete, um lembrete de vida ou morte !
Segredo de Estado.
Se descobrirem nossa subversão, o Willame vai ser expulso do Colégio Militar de Fortaleza...
E nós banidos para o Paulo Sarasate.
E se a mamãe descobrir, vamos juntos pro inferno.
E hoje completam-se quarenta e sete anos de nossa doce vida de bons delinquentes mirins.
Essa era a minha Antiga Fortaleza.
Minha Fortaleza Antiga...
Adriana Noronha
Carapinima
A menina de uma prole de quatorze filhos era a número treze, sendo assim quase caçula, filha de mãe dominadora era quase nula dentro daquela casa, pois haviam outras quatro moças mais bonitas, não sabia ela, que era tão bonita quanto.
Sua maior sorte, o Colégio de Freiras que tinha a mais fina flor do High Society da capital Alencarina, portanto a menina frequentava só bons lugares, farda impecável, suas meias brancas ornadas no belo sapato de verniz preto, e assim ela saia da sua clausura e flanava nas vias asfaltadas que a levavam ao colégio.
Sua casa ficava na Carapinima, era filha do melhor mecânico do Benfica, o famoso Seu Brasil, mas sua mãe megera dizia que mecânico era a pior raça que existia, apesar de ter um lindo pai, moreno, alto, cabelos negros, corpo esguio e semblante de artista Hollywoodiano, sempre que indagada pela profissão do pai, falava que era engenheiro mecânico, e assim seguia sua vida de semi princesa de província tupuniquim.
E num belo dia uma colega lhe ofereceu carona, e ela prontamente recusou.
Obrigado, para vocês é contra mão.
Faço questão ! Disse o lindo irmão de Valdimary.
Pronto e agora ?
Mas vocês moram no bairro de Fátima !
E eu na avenida da Universidade
Não tem problema, desço a Imperador, sigo pela Carapinima, passo por baixo do viaduto de cimento da José Bastos, dobro na Padre Cícero passado pelo viaduto do trilho, faço a volta e pego a avenida daUniversidade...
Quando dei por mim estava, no Corcel II azul celeste, eitha vou passar em frente de casa, e assim foi, no cruzamento da Treze de Maio aCarapinima...
Posso descer aqui.
De jeito nenhum, moça direita se entrega na porta.
No rádio sintonizado na Verdinha, tocava Conversation do Morris, e o lindo rapaz a me olhar pelo espelho,me deixava rubra de rosa, foram instantes de magia, ô minino lindo.
Passamos em frente a Motoclinica, acordei do transe, quando indagada pelo endereço, passamos a Antenor Frota Vanderlei, falei, vá devagar, e pare nessa casa rosa ciclame...
Desci e fiquei ao portão, agradeci, e aguardei a arrancada do Corcel, dei um aceno em agradecimento,e ufa...
E me recompus do sonho cor de rosa e segui para casa, apenas uns cem metros me separavam daquela maravilhosa casa, de propriedade o Dr. Roberto que levava seu Ford Maverik V8, pro papai dá um trato de primeira...
E Hoje já crescida, constatei que o melhor lugar do Mundo, é a casa que vovô morou, que meu pai herdou e deixou pra nós, e o seu Brasil o melhor mecânico do Benfica formou, enfermeiras, professores, professoras e doutoras consertando carros de pobres homens ricos.
Seu Brasil tenho o maior orgulho de ter nascido sua filha,e lá se vão quarenta anos e sempre que posso volto ao nosso quintal encantado, que tem até palmeira imperial.